sábado, 26 de dezembro de 2009

Diálogo XII

Sobre grupos isolados uns dos outros, um momento de privacidade para formar a tropa, imprimir uma personalidade à seção, influências externas, contatos com outros grupos, o que se pode aprender, etc.


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— "Quanto mais isolada uma tropa, mais diferente das outras ela pode ser", diz Bravo, dando início ao diálogo, "pois o isolamento é que propicia a especiação, se é que você me permite empregar um aforismo de Biologia."

— "Eu realmente não conheço muitos grupos. Aqueles que conheço, ou melhor, que já vi pelo menos uma vez ou outra são os daqui. Ainda assim, não posso dizer que eu os conheça bem."

— "Vivemos numa cidade pequena e, seguramente, estamos isolados da maioria dos outros grupos. As atividades regionais ou nacionais tendem a ocorrer na capital do estado, o que é muito natural. A maioria dos grupos se concentra nas grandes cidades e a minoria é que deve se deslocar até lá para tais eventos. Também é natural que esses grupos mantenham mais contato uns com os outros do que com aqueles do interior, tanto contato 'em pessoa' como por telefone, e-mail, etc."

— "Isso é óbvio. E, como raramente participávamos de atividades da Região (nem sei se nós sabíamos o que era Região!), ficávamos restritos aos grupos de nossa cidade. Até certo tempo atrás, o 82 estava fechado e só recentemente foi reaberto. Quanto ao 72, durante muito tempo não mantivemos contato com ele, devido a uma rixa que hoje em dia já está superada. Sendo assim, até um tempo atrás, estávamos praticamente ilhados, como um Robinson Crusoé que ainda não havia explorado toda a ilha em que estava, muito menos chegado a qualquer parte fora dela. Também me parece verdadeiro que, agora, o 21 participe mais de atividades regionais do que antigamente."

— "Isso quer dizer que, muito provavelmente, o 21 tenha preservado mais facilmente certos hábitos devido a esse isolamento, principalmente se lembrarmos que seus chefes estáveis ou duradouros (e estes é que assumiam uma tropa) eram sempre ex-membros juvenis. Ou, ainda, é muito provável que o 21 tenha desenvolvido costumes próprios."

— "Mas afinal: Isso é bom ou ruim?"

— "Creio que por um lado seja bom, mas receio que por outro..."

— "O que poderia ser bom nisso?"

— "Manter velhos hábitos, desde que sejam apreciáveis, pois, quanto maior o isolamento, menor a influência externa. Se as características preservadas ou desenvolvidas ao longo desse período de alheamento foram boas, então ele não terá sido inteiramente ruim."

— "Os grupos de uma cidade grande, via de regra, possuem diferenças menores entre si. São mais parecidos uns com os outros do que em comparação conosco. Talvez sejamos uns verdadeiros alienígenas para eles!"

— "Talvez sim! Mas há maneiras de amenizar a falta de contato. Hoje em dia, por exemplo, podemos acompanhar as atividades de outros grupos pela Internet. Lá estarão algumas fotos e alguns comentários. Muitos grupos possuem uma página na rede mundial de computadores. Quem tiver curiosidade, pode dar uma olhada em grupos da Inglaterra ou do Canadá e ver o que eles andam fazendo por lá. Outra maneira de amenizar o isolamento é participar o mais possível das atividades em grandes cidades, para onde acorre um número considerável de grupos, não só os da própria cidade-sede do evento, mas também os de várias cidades do interior do estado. Os chefes também manterão contato com gente de fora se participarem regularmente de cursos de chefia, seja recebendo instrução, seja auxiliando algum chefe do campo-escola."

— "Parece que, para aumentar o isolamento, alguns de nossos antigos chefes não tinham o hábito de fazer cursos de chefia."

— "Devemos ao menos acompanhar o bonde da história de modo que não fiquemos desinformados do que anda acontecendo por aí. De que maneira usaremos esta ou aquela novidade, já é outra história. Não somos macaquinhos que a tudo imitam sem pensar antes!"

— "Além do mais, somos escoteiros do mar. Não me parece haver muitos gemares por aí. Creio que realmente sejamos um caso à parte!"

— "Mas agora eu que pergunto: Isso é bom ou ruim?"

— "Somos escoteiros do mar. Isso (ser escoteiro do mar) certamente é bom! Mas, quanto a sermos minoria, isso não me agrada muito. Quanto ao fato de não termos sempre estado a par nem ao par de outros grupos..."

— "'Vae soli!' Ai do homem só! Mas será que isso vale para grupos escoteiros?"

— "Meu Deus! De onde você foi tirar essa citação?"

— "Do mesmo lugar de onde tirei estas outras duas: 'In medio stat virtus' e 'In tempore opportuno'", diz Bravo, causando mais risos.

— "O.K., agora me explique o que quer dizer."

— "Creio que devamos nos isolar para manter ou desenvolver certos hábitos, e que devamos ter contato com grupos de fora para estarmos em dia com o que se passa por aí. Um meio-termo seria conveniente. Ou seja: 'In medio stat virtus'."

— "Se estivéssemos falando somente de atividades, você diria que, além de participar de eventos da Região, também deveríamos ter nossos acampamentos de tropa. Acertei?"

— "Na mosca! Somos parte de uma coisa maior, chamada Fraternidade Escoteira, mas isso não quer dizer que devamos perder nossa identidade como tropa. Neste último caso, devemos ser únicos ou correremos o risco de sermos medíocres. Participar somente das atividaes da Região, por mais cômodo que possa ser, não fará de nós bons chefes, nem dos garotos uma autêntica tropa."

— "Agora falta explicar a outra citação e, por favor, fale apenas em português daqui por diante."

— "Não se preocupe. Creio que eu já tenha empregado todas as citações de que precisava. Mas, quanto àquela segunda citação, se vamos realmente começar uma tropa do zero, devemos ter um minuto de privacidade, por assim dizer, para constituí-la ou moldá-la, imprimir-lhe uma personalidade ou estilo. Temos algumas idéias de como deve ser uma tropa e, além disso, queremos evitar certos erros vistos aqui e ali. Desse modo, um momento inicial de isolamento pode ser muito favorável. Mas veja bem: Queremos ser nós mesmos, e não somente estar à altura de algum bom grupo. Se vivermos só de influências externas, ainda que sejam excelentes, seremos sempre o reflexo deste ou daquele grupo. Não se trata só de evitar uma possível má influência, porque talvez nunca cheguemos a recebê-la se fizermos amizade apenas com bons grupos, mas também se trata de evitar as boas. Se temos nossas particularidades em matéria de recursos humanos e materiais, é preciso selecionar e adequar idéias e, mesmo em se tratando das melhores idéias do mundo, recusá-las se notarmos que não produzirão os melhores efeitos segundo nossa realidade. Não falamos, em nosso primeiro diálogo, que a própria localização do grupo interfere sobremaneira na vida dele? Se você me permite uma comparação, eu lhe oferecerei esta: As crianças pequenas são criadas, até certa idade, no ambiente familiar. Depois é que passam a freqüentar a escola e a rua. Se não fosse assim, elas não teriam nada de particular que lhes justificasse a casa, o sobrenome, e nós queremos ser uma casa (isto é, um grupo escoteiro) e também ter o nosso próprio sobrenome (ou seja, queremos fazer o nome do grupo, dar-lhe uma personalidade, se bem que este último termo seja mais adequado a indivíduos). Pois bem! Assim como as famílias não pretendem que suas crianças comecem sua educação fora de casa, tampouco queremos que nossos escoteiros comecem a deles fora do G.E. Daí esse alheamento inicial. Obviamente, mais tarde, teremos contato com outros grupos, mas em tempo oportuno. Ou seja: 'In tempore opportuno'."

— "Talvez possamos aprender muitas coisas com outros grupos, se realmente existem diferenças entre eles..."

— "Certamente podemos. Agora, recorda que em nosso antigo grupo não havia clã pioneiro. Depois que deixei a tropa sênior, passei a freqüentar o clã do 72 (após ter conhecido o chefe pioneiro de lá num curso para chefes). A distância ideológica entre os dois grupos não era tão grande assim como parecia, ou, com o tempo, deixou de ser, de modo que não foi tão difícil transpô-la."

— "Você passou a freqüentar o clã do 72? A chefia do 21 não deve ter gostado muito!"

— "A aceitação do 21 foi melhor do que eu esperava. Apesar de uma brincadeira ou outra (o que é sempre melhor do que alguma cara feia), eu não fui capaz de encontrar nenhuma oposição. E foi aí que eu pude ver a diferença entre os dois grupos. Por exemplo: O 72 teve de acamapar em outra cidade, num parque para ser mais preciso, e eles levaram o bambu necessário à montagem das pioneirias. No parque havia espaço para montar um campo, mas não era permitido cortar madeira. O bambu destinado às pioneirias foi cortado aqui, no tamanho e em quantidade convenientes, de acordo com os projetos de pioneiria previamente aprovados."

— "Nunca fizemos nada parecido no 21."

— "No 21 não pensávamos assim. Eis aí um exemplo do que se pode aprender com outros grupos."

No verão de 2001,
Breno Melo

Diálogo XI

Sobre competições entre patrulhas, maneiras de fazer a contagem de pontos, vícios na contagem e outros fins inadequados a ela, bandeirolas de eficiência, e outras sugestões


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— "Na tropa escoteira ganhávamos pontos", diz Rómeo, voltando no tempo alguns anos, "e, depois de doze meses, havia a patrulha campeã, prestigiada com uma bandeirola de eficiência. Na tropa sênior, entretanto, não tivemos isso, até mesmo porque os jogos eram raros e, se vencíamos, isso era tudo."

— "A competição entre patrulhas também deve existir na tropa sênior. Infelizmente não tínhamos uma bandeirola de eficiência para almejarmos e os jogos eram escassos, como você mesmo já disse. Entretanto, a contagem de pontos merece alguns cuidados."

— "Lembro que, na tropa escoteira, pontos eram perdidos na inspeção do uniforme. Não era o chefe, mas o monitor de uma patrulha rival que fazia a avaliação do asseio. Ainda que uns fossem mais rígidos do que os outros, eles me pareciam sinceros durante essa rotina. Eu, por exemplo, nunca exagerei ou me senti prejudicado. Mas receio que não pudesse ser assim em todas as tropas do mundo o tempo todo e, até mesmo na nossa, porque uns eram mais rígidos do que os outros, alguma coisa ainda não estava bem."

— "De qualquer modo, nesse caso, não ganhávamos pontos pelo asseio, mas perdíamos um ponto para cada item do uniforme que estivesse ausente ou em mau estado. Quanto ao lenço de bolso, pedíamos que o escoteiro nos mostrasse."

— "No quesito presença, creio também que usássemos os pontos negativos."

— "É sempre a melhor coisa a se fazer. Nem todas as patrulhas de nossa antiga tropa tinham o mesmo número de elementos ou, se tinham, isso não durava para sempre. Sendo assim, imaginemos duas patrulhas: uma com oito elementos e outra com seis. Se déssemos pontos positivos, isto é, um ponto para cada elemento presente, por exemplo, e se ambas as patrulhas tivessem 100% de freqüência sempre, ainda assim a patrulha menos 'populosa' jamais poderia superar a sua rival quanto à presença. Seria muito injusto se fosse assim."

— "Receio que nem sempre a contagem de pontos tenha sido feita da maneira mais justa. Já houve o tempo em que uma patrulha de nossa antiga tropa que não ganhasse muitos pontos nos jogos, era capaz de compensar isso através dos pontos positivos adquiridos no quesito presença. Saía-se vitoriosa no final das contas."

— "Felizmente isso foi corrigido mais tarde. Estar asseado e freqüentar as reuniões, a menos que haja uma justificativa, é um compromisso que os escoteiros assumem quando entram na tropa. Não devemos dar pontos quando eles agem desse modo, mas, nos quesitos asseio e presença, fazer uso de pontos negativos."

— "Você quis dizer justificativas e, não, desculpas esfarrapadas, certo?"

- "Imprevistos acontecem, mas sempre que possível o escoteiro deve comunicar sua ausência ao chefe com antecedência, por si mesmo ou através de seus companheiros de patrulha. Quando houver uma justificativa (e não uma desculpa qualquer), não se deve descontar pontos do escoteiro em questão. Quanto ao uniforme, deve ser a mesma coisa."

— "Algumas desculpas esfarrapadas são realmente engraçadas."

— "De fato, são. Mas o chefe não deve aceitá-las ainda que possa rir da piada. Lembro-me daquele escoteiro que disse 'Não pude vir com o lenço do grupo hoje, pois minha mãe teve de usá-lo como fralda no meu irmãozinho menor' (e não é que o lenço era realmente todo branco?) ou 'Eu deixei para lavar meu uniforme ontem à noite e, hoje pela manhã, por incrível que pareça, ele ainda estava molhado'?"

— "Ele teve a semana toda para lavar o uniforme!"

— "Nesse caso, podemos dizer que era uma desculpa esfarrapada, porque lavar o uniforme só dependia dele; não era uma coisa sujeita a imprevistos."

— "Mas, quanto ao quesito jogos, os pontos valiam mais."

— "A contagem de pontos deve ter uma finalidade. Qual seria?"

— "Bem... manter em ordem a tropa e incentivar a competição entre as patrulhas."

— "Que mais?"

— "Refrear algum escoteiro indisciplinado, talvez."

— "Quanto à indisciplina, isso não se trata de competição entre patrulhas. É uma coisa que tem a ver com um escoteiro apenas. A patrulha, creio eu, não deve ser prejudicada por este ou aquele escoteiro menos aplicado. Além do mais, não devemos usar a contagem de pontos para resolver todos os problemas da tropa. Indisciplina e descumprimento da Lei Escoteira são casos para a Corte de Honra. Não substituamos uma coisa pela outra! Façamos distinção entre comportamento 'individual' e aquele 'da patrulha como um todo'. Imagine que algum escoteiro não esteja nem aí para os pontos que sua patrulha perde por causa dele. É justo deixarmos que ele continue com isso? Creio piamente que os outros rapazes dessa patrulha não mereçam isso se eles são esforçados!"

— "Mas o que deve pesar mais? Os jogos ou a apresentação da patrulha?"

— "Sem querer ser radical, creio que possamos abolir certos quesitos da contagem de pontos. Por exemplo, não deveríamos tentar compensar o baixo comparecimento dos escoteiros às reuniões aumentando o valor dos pontos descontados por cada ausência. Se a freqüência deles é baixa, o problema não está na contagem de pontos, nem aí tampouco deveria estar a solução. Quanto ao asseio, é obrigação do escoteiro estar com o uniforme em dia. Se geralmente ele anda mais desleixado que impecável, ainda que sua patrulha perca alguns pontos por isso, então o problema tampouco se encontra na contagem de pontos, porque não é um problema da patrulha, pois o asseio é algo que o próprio Movimento exige a fim de conservar uma boa imagem diante dos olhos do público em geral, já que é representado por cada escoteiro que anda pelas ruas. Lembremos também que cada escoteiro leva igualmente consigo o nome de seu grupo. Talvez o chefe, numa boa conversa em particular, possa entender o que está havendo. Se for puramente desleixo, isso deve acabar o quanto antes e o chefe não deve negociar, nem ceder um milímetro que seja, mas explicar a conveniência do asseio. Quanto a uma peça do uniforme que o escoteiro tenha perdido e que, no momento, ele seja incapaz de substituir, então já são outros quinhentos e devemos ver a melhor maneira de resolver o problema."

— "Parece que o asseio e a presença não devem ser resolvidos pela contagem de pontos, mas somente incentivados por ela."

— "As patrulhas que se saem melhor na prática de atividades escoteiras devem ser, invariavelmente, as campeãs da contagem (e não 'chantagem') de pontos. O que deve vir em primeiro lugar é, sem dúvida, aquilo que chamamos Escotismo. Se um escoteiro não anda asseado ou não cumpre a Lei, então não estaremos falando de um autêntico escoteiro nem tampouco do verdadeiro Escotismo. Jogos de futebol que, eventual ou freqüentemente, possam ocorrer numa tropa, não devem pesar na contagem de pontos, ainda que vivamos no País do Futebol. O que realmente deve pesar é tudo aquilo que se refira à cozinha, pioneiria, primeiros socorros e tudo mais que faça parte do conteúdo que um bom escoteiro deve saber. A contagem de pontos não deve, ressalto, ir por caminhos que se afastem disso."

— "Pensando assim, faz muito sentido. Não queremos que a melhor patrulha de nossa tropa seja aquela mais hábil em jogar futebol, nem a mais comportada ou bem penteada. Asseio não se discute e assuntos de Corte de Honra não se resolvem pela contagem de pontos."

— "Vejo que você é tão radical quanto eu nesse assunto."

— "Parece que sim."


2

— "Mas quanto ao tempo que deve durar a contagem de pontos, você já pensou sobre isso?"

— "Em nossa tropa, a competição era anual. O que você sugere?"

— "A melhor idéia que já vi a esse respeito [a do cap. Rolando Phillipps, in O Sistema de Patrulhas] prevê que um período muito longo pode desmotivar aquelas patrulhas que ficam muito para trás na contagem. Um período de seis meses, pensando bem, me parece razoável. Não é muito longo nem muito curto."


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— "Vejo que em breve teremos de providenciar um troféu para a patrulha vencedora."

— "Um troféu é realmente uma boa idéia, mas, invariavelmente, ele fica na sede do grupo. Uma bandeirola de eficiência seria a primeira coisa a ser oferecida. Ela, depois de fixa ao bastão do monitor, acompanha a patrulha aonde quer que esta vá. A bandeirola, ou a lembrança da vitória, estaria assim sempre saltando aos olhos de todos. Numa atividade fora, alguém perguntaria 'O que significa essa bandeirola?' e o monitor teria prazer em responder que a patrulha dele foi a melhor da tropa nos últimos doze ou seis meses."

— "Tínhamos mais de uma bandeirola de eficiência. Havia a de melhor patrulha em reuniões, a de melhor patrulha em atividades de campo, e também uma para caças ao tesouro. A de eficiência em atividades de campo era uma flâmula verde com o sinal de pista 'acampamento nesta direção' em cor branca, ao centro, de ambos os lados da flâmula."

— "Esta última deveria ser disputada a cada acampamento de tropa, mas creio que devêssemos levar em conta todas as atividades de campo também, desde que praticássemos técnicas escoteiras. Atividades de campo só no nome, em que passamos o dia na praia com banhos de mar ou jogando futebol, ou mesmo tendo jogos escoteiros, mas só do tipo quebra-gelo ou 'indoor', não deveriam ser levadas em conta."

— "Concordo. Ela só era disputada em acamapamentos, até que eles foram escasseando e, por um motivo ou por outro, a disputa deixou de existir. Ela acabou ficando no bastão de sua patrulha. Essas coisas só acontecem mesmo com você! A bandeirola deve estar no mesmo lugar até hoje!"

— "Se está, é por esquecimento e não por mérito. Não vejo nenhuma vantagem nisso."

— "Se eu me lembro bem, nossas bandeirolas eram passadas de patrulha em patrulha. Mas, se a patrulha campeã perdesse a bandeirola? Ou, ainda, se a bandeirola sofresse algum dano durante o ano ou semestre?"

— "Devemos conversar com os monitores e propor algumas regras. Por exemplo: Cada patrulha é responsável pela bandeirola enquanto ela estiver sob seus cuidados. A patrulha deve, apesar de qualquer imprevisto, ser capaz de manter a bandeirola em seu bastão e passá-la à próxima campeã quando for chegado o momento. Em todo caso, teremos uma bandeirola como reserva, cópia fiel da original, mas isso será um segredo da chefia, por motivos óbvios. Se chegarmos a usá-la, diremos até que ela foi feita da noite para o dia por uma costureira insone! Os escoteiros não devem ter menos cuidado com a original lembrando que há uma para emergências, nem imaginar que não confiamos neles o bastante. O que não queremos é que a patrulha vencedora do último ano ou semestre, quando for o momento de receber a bandeirola, fique sem o prêmio que lhe é devido. Eis aí a conveniência de uma bandeirola reserva. Mas, se isso acontecer, a patrulha que tiver perdido ou danificado a original, ainda terá o dever de fornecer uma bandeirola sobressalente à chefia, de modo que tenhamos sempre um 'estepe' para uma eventualidade."

— "Creio que seja uma boa precaução. Quando assumi o cargo de monitor, a bandeirola de minha patrulha, com o animal-totem, tinha um furo que, segundo a lenda, havia aparecido misteriosamente durante um acampamento, depois que ela foi deixada fincada no chão."

— "Aquilo era tiro de bala! Alguém devia estar caçando por perto ou apenas de passagem e..."

— "Essa é uma das versões para o caso, na verdade nunca saberemos."

Diálogo X

Sobre como adquirir material de campo, as primeiras atividades extra-sede, o primeiro acampamento de tropa, a importância da experiência prévia, e o que o chefe Quim faria


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— "Eu estive pensando", dizia Rómeo, "como vamos adquirir o material de campo necessário para as atividades da tropa?"

— "Se um grupo vive de mensalidades, é provavelmente daí que virá toda a renda do grupo. Não vamos herdar material algum, porque vamos começar do zero. Mas como o primeiro acampamento será só para uma patrulha, já que os graduados devem ter alguma experiência prévia antes mesmo do primeiro acampamento de tropa, não haverá problema algum. Podemos contar com nossas barracas. Para a chefia bastará uma. Para os garotos, uma ou duas barracas são suficientes. Isso depende do tamanho delas. Podemos, ainda, conseguir algumas barracas emprestadas se for o caso. Devemos ter em mente que adultos e membros juvenis nunca dividem a mesma tenda, e que cada membro, adulto ou juvenil, tem o seu próprio leito. Imagine um escotista e uma escotista que sejam namorados. O melhor momento para dormirem juntos não seria numa atividade escoteira."

— "Mas quanto a ter material próprio de campo?"

— "De um modo ou de outro, provavelmente teremos de comprar. Para uma patrulha de oito, por exemplo, é boa idéia adquirir duas barracas, mas não duas com espaço para quatro ocupantes cada uma. Devemos imaginar que o quinto elemento pode muito bem ser representado pelas mochilas. Desse modo, duas barracas de cinco lugares cada uma seria o ideal para uma patrulha de oito, a não ser que você realmente goste de construir aqueles mochileiros do lado de fora da tenda. Em todo caso, se mandamos uma patrulha de 5 membros a uma atividade regional, sempre se pode dormir com as pernas sobre as mochilas, de maneira a não termos que levar duas barracas de 5 lugares cada uma para uma patrulha de 5 elementos. Não é lá muito confortável, mas..."

— "Você disse comprar. De onde viria o dinheiro? Não temos nenhum patrocínio em vista."

— "Ao que tudo indica, nosso grupo viverá de mensalidades. Ao menos a curto prazo. Vamos supor então que tenhamos uma pequena tropa. Três patrulhas com 7 escoteiros cada uma. Digamos que o valor da mensalidade seja de R$ 10,00, o que não seria um valor alto. Em seis meses, teríamos cerca de R$ 1.200,00 para a compra de material de campo. É claro que ainda poderemos contar com nossas barracas e alguma ajuda extra, pois também já estamos entrando em contato com outros ex-escoteiros, hoje adultos, para que também sejam chefes no grupo, não é mesmo? Desse modo, precisaríamos esperar meio ano até o primeiro acampamento de tropa, depois que a segunda leva fosse chamada e começasse a pagar mensalidades. Em todo caso, como no início tudo parace menos fácil, podemos contribuir para a renda do grupo de algum modo. Por exemplo: As reuniões, bem ou mal, consomem algum dinheiro. O material para os jogos não costuma cair do céu e nem sempre pode ser adquirido gratuitamente. Para começar, poderíamos bancar as primeiras reuniões. Não estamos falando de nenhum valor elevado."

— "Concordo. Acho que cada um terá de se esforçar um pouco e, no começo, nada é tão fácil assim."

— "Então, vejamos se você ainda concorda comigo. Nos primeiros meses, a prioridade seria adquirir o material de campo conveniente a uma tropa?"

— "Certamente. E creio que já tenhamos um número suficiente de interessados para começar, tanto em se tratando de chefes como de escoteiros."

— "Sim, de fato já temos. E o que mais falta?"

— "Também já consegui autorização para usar as dependências de uma escola e, creio eu, num bairro que atende às nossas necessidades em matéria de recursos humanos, de acordo com aquele nosso primeiro diálogo."

— "Bem... parece que já temos aqueles três elementos: sede, escoteiros e chefes."

— "O que mais falta?"

— "Creio que já tenhamos um bom número de excelentes idéias para começar. Devemos constituir o Conselho de Pais e, fora seguir a burocracia necessária, planejarmos nossas primeiras reuniões."

— "Estou de pleno acordo. Mas quanto a fundar uma patrulha? Estou falando do animal-totem, por exemplo."

— "É aconselhável que eles escolham somente animais que se encontrem em nossa região, no caso de uma patrulha de escoteiros, que é justamente o nosso caso. Podemos preparar uma lista. Isso ajudará bastante. No caso de uma patrulha de seniores, eles podem escolher um acidente geográfico ou uma tribo indígena. Quanto a um acidente geográfico, também seria de bom-senso eleger um que se encontrasse em nossa região. Um mapa ou carta topográfica ajudaria muito. No caso de uma tropa escoteira da modalidade do mar, escolhem-se animais marinhos (tubarão, etc.) ou relacionados com o mar (gaivota, etc.) que vivam na região. No caso de uma tropa sênior da modalidade do mar, é boa idéia escolher somente acidentes geográficos intimamente relacionados ao mar. Por exemplo: uma ilha, uma praia, uma restinga, uma ponta ou uma enseada. De preferência, o mais perto possível da sede do grupo ou ao alcance da patrulha. Quanto ao grito, todos devem ter uma letra curta, nada muito demorado, mas que seja uma espécie de cartão de visitas que a patrulha usa para se apresentar. Devemos imaginar a reação de outras patrulhas, principalmente de outros grupos, diante do grito de uma patrulha."

— "Quando entramos para a tropa sênior de nosso grupo, não havia mais seniores, mas herdamos os nomes de patrulha e as bandeirolas. Infelizmente não havia registro em lugar algum quanto ao grito de cada patrulha."

— "O que viemos a saber recentemente é que os gritos eram em Tupi-Guarani. Eis aí uma excelente idéia para gritos de patrulha, principalmente se for escolhida alguma denominação indígena para nome."

— "Creio que muitas patrulhas teriam inveja de nós se tivéssemos herdado esses gritos em Tupi-Guarani. Nunca tinha ouvido falar em nada parecido."

— "Nem eu. Mas o grito sempre deveria ser composto na língua da denominação indígena escolhida. Seria muito estranho se fosse de outro modo. Em nossa cidade há índios, você sabe, e talvez não seja díficil (principalmente se formos até lá com funcionários da Prefeitura) fazer uma visita à tribo. Eles seriam as melhores pessoas para dizer se conseguimos compor uma letra na língua deles. Não é difícil encontrar uma gramática de Tupi-Guarani numa biblioteca pública, e talvez não seja difícil achar os rudimentos da língua na Internet para compormos um simples grito."

— "Realmente seria um diferencial."

— "Seria uma tradição se começássemos assim. Afinal, uma tradição começa desde o primeiro dia e, dentro em breve, deveremos ter uma tropa sênior para receber os ex-membros da tropa escoteira."


2

— "Agora, deixe-me entender melhor. Depois de convocarmos a segunda leva de interessados para formarmos as primeiras patrulhas, esperaremos ainda cerca de seis meses até o nosso primeiro acampamento de tropa, certo?"

— "Certo."

— "Sendo assim, o que faremos nesse meio-tempo? Outra tropa não esperaria tanto assim..."

— "Teremos algumas atividades extra-sede, como excursões em que praticaremos de antemão muita coisa que faremos no primeiro acampamento de tropa. Lembre-se de que ensinaremos com antecedência o máximo possível de coisas praticáveis num acampamento, como o uso de lampião e fogareiro, facão e machadinha e, principalmente, cozinha. Não queremos comer mal, não é? Estou vendo que seu estômago concorda com o meu. Pois bem! Nos últimos três meses desse período também faremos aquele primeiro acampamento com os graduados, de modo que não tenhamos um grande número de pata-tenras em nosso primeiro acampamento de tropa e possamos deixar, o máximo possível, cada patrulha nas mãos de seus monitores e subs. Essa é a melhor maneira de não sermos babás. Desejamos ser chefes, estou certo? A profissão de babá, embora muito bonita, não deve ser sinônimo de chefia. É claro que estaremos sempre lá para o caso de algum imprevisto, mas o objetivo é que eles aprendam a depender o menos possível de terceiros. Quanto mais uma patrulha souber viver por conta própria, isto é, como unidade autônoma, melhor. Creio que para tudo isso seis meses não seja um período de tempo exagerado, mesmo que outra tropa se lançasse a um acampamento logo no primeiro mês, deixando para depois, incrivelmente, as atividades mais simples, como as excursões."

— "Tem razão. Há muito para ser feito antes, se desejamos seguir a ordem natural das coisas! Parece que a Inteligência manda agir assim..."

— "A primeira metada desse período dará ênfase também às reuniões de tropa, de modo que os novatos da segunda leva possam ser instruídos nas etapas de noviço. Nesse momento, já teremos as patrulhas formadas (digamos três, com 7 elementos cada uma). Estaremos então instruindo a tropa através dos monitores. Será uma novidade para todos. E daremos início à competição entre patrulhas. Quanto às atividades extra-sede, elas devem começar a ocorrer ainda durante a primeira metade desse período, mas, mesmo dentro dessas atividades, não deixaremos de instruir os noviços nas etapas introdutórias através dos monitores e propiciar os respectivos jogos. Se antes desse período de seis meses havia reuniões com a primeira leva de interessados, eram reuniões de patrulha dadas pela chefia. Quanto à instrução, instruíamos os garotos como se fôssemos o monitor e o sub, e daí o veradeiro monitor e o verdadeiro sub lideravam suas metades da patrulha nos jogos. É boa idéia numerar os jovens de uma patrulha, de modo que o número 1 seja o monitor e o 2, o sub; os demais recebem os números subseqüentes. Sempre que a patrulha for dividida em duas, os números ímpares ficam com o monitor, e os números pares, com o sub. Sobre essa numeração, q.v. Escotismo Para Rapazes. Mas, ainda naquele período em que contaremos apenas com a primeira leva, já faremos algumas atividades extra-sede."

— "Vejo que, em matéria de excelentes idéias, estamos bem servidos."

— "Mas ainda não falamos tudo sobre o primeiro acampamento da tropa. Falta polir uma coisa aqui e outra ali..."

— "Acredito que você tenha pensado um pouco mais a fundo sobre os cuidados que você já mencionou a esse respeito, de modo que tudo vá bem."

— "Ou para que cheguemos o mais perto possível disso. Afinal, não queremos traumatizar nossos escoteiros logo na primeira grande atividade!

— "Estou me lembrando de um escoteiro que, em seu primeiro acampamento, pediu para voltar para casa. Alguma coisa não era o que ele esperava e, infelizmente, ele só descobriu em cima da hora. Aquela atividade, de fato, terminou com um escoteiro a menos."

— "Antes que façamos nosso primeiro acampamento, devemos de fato realizar algumas atividades menores. Servirão como preparação. E mesmo essas atividades menores terão seus próprios preparativos, tanto quanto possível, através de reuniões favoráveis."

— "O que você quer dizer com reuniões favoráveis?"

— "Num acampamento normal, e não num 'barracamento', os escoteiros terão de praticar cozinha e pioneiria, além de fazer uso de machadinhas, facões e lampiões. Também devem, obviamente, estar habituados a lidar com barracas e tudo mais que seja necessário. Pois bem! Para tudo tem a sua primeira vez, mas, definitivamente, um acampamento não é a melhor ocasião para os estreantes em cozinha, por exemplo."

— "Claro! Queremos evitar o caos!"

— "Então, antes de acampar, devemos praticar cada uma dessas coisas citadas anteriormente, em atividades menores. Para isso, servem muito bem as excursões e pequenas atividades."

— "Há chefes que diriam: — 'Mas não é na prática que se aprende? Para que se preocupar? Na hora tudo se ajeita!' Ou, para citarmos aqueles que conhecem nossas diretrizes e bases: — 'No Movimento Escoteiro aprendemos fazendo!' Como se alguém nascesse sabendo dar nós, cozinhar e fazer pioneirias!" diz Romeo, com bom humor. "Esses chefes certamente aprenderam com o grande chefe Quim!"

— "Uma coisa é aprender fazendo; outra é deixar os escoteiros no mato sem cachorro, nem gato nem rato! Além do mais, um chefe deve planejar as atividades e reuniões de sua tropa e, quando digo planejar, não é apenas assinalar uma data na folhinha; é fazer o programa de atividades ou reuniões, observando o que se quer a longo prazo. Definitivamente, não estou falando de ver a grama crescer..."

— "Mas o que poderíamos fazer de bom antes mesmo do primeiro acampamento de tropa e dessas atividades menores?"

— "Por exemplo: Ensinaremos a fazer amarras durante as reuniões na sede. Numa atividade menor, em que não haja pernoite, farão uma pequena pioneiria. Assim ganha-se tempo dentro da própria atividade, porque nos preparamos para ela numa reunião de tropa na sede. Desse modo, pioneiria não será novidade no primeiro acampamento. Se o tópico dessa pequena atividade for realmente pioneiria, podemos levar lanche frio de modo que não tenhamos de nos preocupar em cozinhar. Mas, se o tópico for cozinha de campo, então cozinhar será a principal coisa a se fazer durante o dia. Porém, tudo que pudermos iniciar já na sede, durante as reuniões, não deve ser deixado para depois."

— "Então, realmente não haverá nenhuma novidade quando eles acamparem pela primeira vez?"

— "A grande novidade será praticar tudo isso numa só atividade. Queremos que eles se sintam o mais à vontade possível em atividades de campo. Não queremos, de modo algum, que eles urrem ou aprendam da pior maneira possível. O chefe Quim talvez dissesse: — 'No meu primeiro acampamento, eu tive de me virar sozinho e aprender tudo na marra. Não vejo por que com meus escoteiros deva ser diferente. Creio que eu tenha me tornado um bom escoteiro afinal!'"

— "Da maneira como você está falando, vejo que os nossos escoteiros saberão melhor do que o Quim Novato o que fazer quando estiverem acampados. Creio que assim eles não vão depender muito de nós e, sinceramente, não tenho vocação para babá."

— "Tampouco eu. Mas, ainda quanto a novidades, eles terão o seu primeiro fogo de conselho, seu primeiro pernoite e seu primeiro jogo noturno. Ainda assim, vamos ir quebrando o gelo aos poucos. Quando houver o fogo de conselho, é desejável que eles já estejam familiarizados com 'sketches', por exemplo."

— "O chefe Quim, ou melhor, a mamãe passarinho Quim empurra seus filhotes para fora do ninho antes que eles saibam voar."

— "Seria uma ótima maneira de fazer tudo errado."

— "Uma excelente maneira de dar com os burros n'água, você quer dizer."

— "Seguramente. Quanto mais concorremos para que eles adquiram habilidades em um mínimo de práticas que um acampamento exige, melhor."

Diálogo IX

Sobre o chefe Quim novamente, o Akelá Quim, contar vantagens sobre a própria seção, ridicularizar as seções contíguas, evasão no Movimento Escoteiro, mais algumas do chefe Quim, e bolsas de ajuda


1

Haviam voltado à caricatura surgida no diálogo anterior. O mote "castigat ridendo mores" havia agradado e, de fato, é uma ótima maneira de pôr fim a certos hábitos. Acima, o dia era azul e claro.

— "O chefe Quim, ou melhor, o Akelá Quim geralmente diz a seus lobos: — 'Nossa Alcatéia é um paraíso na Terra, onde mana leite e mel, mas na tropa escoteira vocês verão o que é suar a camisa. Lá é que vocês vão penar com tarefas pesadas, descascando batatas e cavando latrinas!' ou 'Aproveitem a Jângal enquanto é tempo, pois logo virá a cidade dos homens e nada mais será tão bom como agora', etc. Creio que você já tenha apanhado o espírito da coisa."

— "Alguns lobos sabem o que são batatas, principalmente quando já estão cozidas ou fritas, de preferência fritas, mas às vezes é uma novidade para o vocabulário deles a palavra latrina. O Akelá está falando a verdade? O.K.! Mas daí a atemorizá-los, falando sobre a futura seção como um profeta que anuncia o fim do mundo, ou retratá-la como se fosse o próprio inferno, já é uma grande maldade. Alguns chefes realmente não se referem às seções posteriores empregando os melhores termos. O chefe escoteiro Quim diria algumas palavras semelhantes a respeito da tropa sênior."

— "E então, quando é chegado o momento, os lobinhos deixam a Jângal como se fossem Adão e Eva naquela pintura de Masaccio, tristemente retrados quando expulsos do Paraíso, se é que os lobos cometeram algum pecado. Ou, quando eles completam os 11 anos, fogem da tropa escoteira como o diabo da Cruz, e o Movimento perde então alguns membros juvenis, como se pudéssemos nos dar a esse luxo!"

— "'Pedoai-lhes, eles não sabem o que fazem!'" diz Romeo, de bom humor.

— "Talvez eu tenha exagerado nas palavras que usei, mas a caricatura é a melhor maneira de realçar um problema e deixá-lo à vista dos mais míopes. A maioria dos chefes Quim pode ser bem mais sutil do que a caricatura que lhe apresentei. Mas as imagens que vão sendo plantadas nas mentes dos lobos ou escoteiros são exatamente as mesmas. A idéia que fica é de que a seção seguinte será sempre pior do que a atual. Isso deve ser evitado a todo custo e por vários motivos. Em primeiro lugar, não estaríamos falando a verdade assim. Sempre que avançamos um ramo, estamos evoluindo no Movimento. Um bom chefe deve incentivar os membros de sua seção a passarem para o ramo subseqüente quando for chegada a hora."

— "Mas o chefe Quim..." diz Romeo e ri.

— "O chefe Quim, por um motivo ou por outro, não deseja que seus escoteiros se divirtam tanto na seção posterior como se divertiram na sua. Muitos chefes se sentem honrados quando um ex-lobinho diz: — 'A tropa escoteira não está sendo tão boa como a Alcatéia. Penso até em sair do grupo.' E então o chefe Quim (neste caso um Akelá) já pode se gabar, dizendo discretamente a seus botões ou em alta voz para quem quiser ouvir: — 'Sou um excelente chefe, porque só na minha seção os garotos realmente aproveitam o Movimento Escoteiro e se divertem!'"

— "Muitos garotos se assustam tanto com isto ou aquilo que um escotista diz, que chegam a temer a seção seguinte. Muitos chefes têm sempre alguma história para contar. Geralmente alguma atividade pouco feliz."

— "Ou mesmo uma atividade prazerosa, mas pintada com outras cores. Uma caminhada que para escoteiros pode ser uma ótima atividade, para lobos pode parecer pouco atrativa (ainda mais se dissermos a extensão do percurso). Cada ramo tem suas atividades características, de acordo com o desenvolvimeto físico e mental de cada faixa etária. É natural que aquilo que os escoteiros fazem possa não parecer tão atrativo para a Alcatéia."

— "Então, não sejamos como o chefe ou o Akelá Quim."

— "E, se houver um em nosso grupo, daremos um jeito nele."

— "Você não está pensando em...?"

— "Oh, não! Nenhuma medida extrema como o afastamento dele ou coisa parecida. Penso que uma boa conversa em particular possa resolver o problema. Creio que muitos chefes Quim não tenham a exata consciência do que fazem. Alguns, talvez, não saibam sequer explicar o porquê de seu comportamento, mas, se perguntarmos se os seus antigos chefes agiam de igual maneira, provavelmente a resposta será sim. São hábitos herdados. Como eu já disse a você em outro diálogo, a maioria das pessoas herda idéias e não pára para pensar a respeito. Essas pessoas crêem piamente que essas idéias estejam certas e não admitem de modo algum a hipótese de estarem agindo de maneira errada. Mas, infelizmente, acontece que a maioria das idéias herdadas pode estar errada, e geralmente está."

— "Daí a conversa que devemos ter com o chefe Quim em particular."

— "Essa conversa deve ser uma preocupação do chefe de grupo. Ele deve ter o cuidado de orientar os chefes de seção a esse respeito. Afinal, quem deve cuidar do G.E. como um todo é ele. E nós realmente queremos um senhor grupo escoteiro e, não, uma colcha de retalhos mal costurada. De fato desejamos que todos os membros juvenis passem por todas as seções até que possam chegar à chefia, e de preferência de maneira prazerosa. O momento em que a maioria dos jovens abandona o grupo é, justamente, durante a mudança de ramo. A evasão nunca é maior em outro momento! Vê aí a importância de incentivar os garotos e, não, atemorizá-los? Consegue entender agora o valor de uma boa trilha escoteira, ou de uma ótima rota sênior? Infelizmente alguns jovens sequer passam por esses momentos de transição (cujas conseqüências são obviamente práticas) e são lançados abruptamente de uma seção para outra, 'ex abrupto' como mudar da água para o vinho, mas, mesmo em se tratando do licor de Baco de que gostamos, ele ainda leva algum tempo nos barris de carvalho até que esteja pronto para seguir adiante. Não imagino que possamos fazer como Jesus. Penso também que, se julgar necessário, o chefe de grupo deve conversar com os membros juvenis que nos próximos meses passarão para outra seção."


2

— "Creio que ridicularizar as outras seções também seja uma péssima idéia. Até aqui estávamos falando de atemorizar, não é? O.K.! Imagine que um garoto já tenha 11 anos e por isso entre imediatamente na tropa escoteira, isto é, ele nunca passará pela Alcatéia como membro juvenil. Certamente, ele poderia incentivar algum colega ou primo mais novo a entrar para a Jângal, mas, como o chefe escoteiro provavelmente estará dando o troco ao Akelá Quim ridicularizando a Alcatéia, esse garoto não quererá isso para um amigo ou parente. Nesse caso, o tiro do Akelá Quim terá saído pela culatra. Se o seu rival imediato, o chefe Quim escoteiro, decide ridicularizar o Baloo (oh, o Baloo! que gute, gute!) e a Jângal de Rudyard Kipling, o chumbo trocado entre eles pode muito bem ter este resultado: ambos os duelistas feridos e nenhum vencedor no final das contas!"

— "E esse escoteiro de 11 anos, depois de adulto, estaria à vontade para ser o chefe de uma seção que ele mesmo considera ridícula?"

— "Receio que não."

— "Certamente que não! Devemos dar todos os motivos do mundo para que os jovens falem bem do grupo e não só desta ou daquela seção. Os garotos crescem e, você sabe, os filhos deles também poderão fazer parte de nosso grupo. Nesse caso, um escoteiro que nunca tenha sido lobinho não deve ter uma opinião desfavorável sobre a Alcatéia. Queremos que os garotos entrem para o grupo o quanto antes. Lembre-se de que quanto mais laços, melhor..."

— "E que mais o chefe Quim poderia fazer?"

— "Muitas coisas. Por exemplo: Durante uma reunião de tropa, um chefe dará um jogo de seguimento de pistas. Algum assistente usa giz e vai riscando os sinais aqui e ali pelas ruas do bairro. Ele desenha um sinal de 'ultrapasse o obstáculo' apontando para um muro (o muro da sede, é claro) ou, se ele quer fazer uma piada, apontando para um quebra-molas numa das ruas pouco movimentadas de um bairro residencial. Até aqui, nada de mais. Entretanto, o chefe Quim nunca daria esse jogo durante um acampamento ou atividade de campo. O chefe Quim dá jogos de campo na sede e, francamente!, jogos de sede durante as atividades de campo! Já falamos em outro diálogo que cada tipo de jogo exige certo ambiente ou determinada condição. Pois bem! Uma tropa que raramente acampa deveria aproveitar os seus acampamentos da melhor maneira possível, isto é, realizando o maior número de jogos de campo que puder e, obviamente, deixando o futebol para ocasiões mais oportunas."

— "Realmente faz sentido. Há tropas que raramente acampam e, quando o fazem, comportam-se como se estivessem na sede. O chefe Quim deveria ser proibido, para o bem dos escoteiros de uma seção!"

— "Um bom chefe de grupo vai pegar os chefes da família Quim que existirem em seu G.E., pois ninguém está livre desse infortúnio, e vai lixá-los aqui e aqui, pacientemente, com muitas conversas e exemplos, até que possamos extirpar-lhes o sobrenome Quim."

— "Vejo que um chefe de grupo deve ser muito paciente."

— "Um chefe de grupo deve ser capaz de aconselhar os chefes das seções e, pacientemente, ser capaz de se recostar numa boa cadeira e cruzar as pernas como manda a etiqueta, acender o seu velho cachimbo (caso o fume) como se estivesse num fim de tarde e não houvesse mais nada para fazer. Uma conversa deve durar o tempo que for necessário e um bom chefe de grupo saberá ouvir mais do que falar. Conselhos prontos e frases feitas não ajudam muito. E, se antes eu falei em 'muitas conversas e exemplos', eu quis dizer que, quando alguém não entende uma abstração, devemos lhe oferecer um bom exemplo ou quadro pintado. Uma coisa é dizer que cada tipo de jogo requer um ambiente diferente; outra coisa é dizer que o chefe Quim dá jogos de cidade no campo, e jogos de campo na cidade. Um bom chefe de grupo tampouco deve resolver todos os problemas de seus chefes de seção, mas deve, antes de tudo, ajudá-los a pensar e a decidir, fazendo-lhes muitas perguntas depois de ouvir as queixas deles, abrindo-lhes os olhos para este ou aquele ponto. Sendo assim, digamos que o chefe da seção escoteira tenha dificuldades de manter os lobos que passam para a tropa escoteira, porque eles se evadem do grupo poucas reuniões depois. Um astuto chefe de G.E. perguntaria ao chefe escoteiro, entre outras coisas: Por que eles (os lobos) deixam a tropa? Você (chefe da tropa) consegue identificar o motivo? E, se o motivo é este ou aquele, como anular isso? O que você poderia fazer? Já teve uma conversa com os monitores ou com a tropa para que eles não amedrontem os lobos e tenham um cuidado especial com quaisquer novatos, lobos ou não, porque o G.E. quer diminuir a evasão? Não há trilha escoteira como deveria haver? Já conversou com o responsável pela Alcatéia? No que eu (chefe de grupo) poderia ajudar? Gostaria de minha presença durante essa conversa? etc., etc., etc. A idéia é ajudar o chefe da seção a achar a solução do problema e, não, fazer isso por ele, pois o objetivo é ajudá-lo como 'ator coadjuvante' e, não, como 'ator principal'. O chefe de grupo só deveria interferir diretamente em uma seção em casos excepcionais."

— "E o que mais o chefe Quim seria capaz de aprontar numa tropa? Você, decerto, tem outros exemplos."

— "Tantos quantos sejam as estrelas no céu,
infelizmente. Mas nada que não possa ser corrigido. Errar é humano, todos sabem, 'errare humanum est', e não somos superiores a ninguém, mas o fato é que poucos sabem que estão errando ou, se o sabem, não identificam muito bem onde está o equívoco de modo que possam corrigi-lo. Alguns sequer gostam de procurar ajuda ou de admitir que precisam dela. Mas a idéia é justamente evitar esses erros. Os chefes Quim são, na verdade, pata-tenras e devem evoluir. Os chefes não nascem prontos e devem receber conselhos aqui e ali até que possam andar com as próprias pernas. Há chefes que nunca foram membros juvenis, que nunca consumiram literatura escoteira, que nunca fizeram um curso (embora assumam uma tropa) e que fazem do Escotismo o que eles acham que dever ser e, não, o que ele realmente é. Em outras palavras: não sei, não quero saber e faço do meu jeito! É pena que seja assim. 'Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades', como diria aquele poeta, mas nada acontece sem esforço. A boa vontade deve ser uma coisa prática ao invés de se limitar ao mundo das idéias. Mas vamos lá. Você quer outros exemplos... Penso que poucas coisas sejam mais abomináveis do que adiar a entrega de um distintivo. Se um garoto se esforçou para cumprir, digamos, os requisitos de uma especialidade, o chefe também deve se esforçar para entregar o distintivo correspondente através da devida cerimônia, além de se mostrar contente com isso. Devemos manter os garotos entusiasmados, e nada seria mais contrário a isso do que adiar a entrega de um distintivo. Seria uma bela forma de desestimular o restante da tropa a cumprir qualquer etapa. Os escoterios não devem duvidar de que receberão seus distintivos. Um típico chefe Quim, quando interpelado, responderia: — 'Você acha que eu vou à Região todo dia?! Se você esperou até agora, espere um pouco mais!' Ou, fazendo uso do bom humor, diz alguma piada e foge do assunto. Um bom chefe, quando não vai à Região regularmente, deve adquirir alguns distintivos de antemão. Mais cedo ou mais tarde, eles sairão da gaveta e habitarão o uniforme de algum garoto esforçado. Só numa tropa não muito boa o chefe teme que os distintivos comprados de antemão criem mofo dentro de alguma gaveta. Tanto quanto possível, o grupo deve fornecer gratuitamente os distintivos. Será um grande estímulo. Um garoto não deve ter em mente que pagou por eles, ainda que indiretamente isso aconteça através do pagamento de mensalidades. Quanto à cerimônia de entrega, ela deve ser realmente solene. O chefe Quim realiza a entrega de um distintivo após um jogo agitado, quando todos estão sem gandola e suados. Mas poderia ser ainda pior. O chefe Quim poderia fazer alguma piada ou relembrar algum momento embaraçoso do escoteiro em questão. Você sabe como os adolescentes são inseguros, principalmente quando a gozação parte de um adulto. Todos já fomos 'pata-tenras' um dia e, creio eu, já passamos por momentos de embaraço. Entretanto, uma cerimônia não é a ocasião mais adequada para relembrar esses infortúnios. O escoteiro deve se sentir orgulhoso com a cerimônia e, não, humilhado ou embaraçado. O chefe Quim, algumas vezes, aproveita ocasiões como essas para aparecer mais do que a figura principal. Nada mais triste."


3

— "E o que mais um chefe Quim faria?"

— "Algumas vezes, não é possível enviar todos os escoteiros de uma tropa a uma atividade da Região. Apenas a um ou outro de cada patrulha é possível participar. Então, juntam-se seis ou oito escoteiros, geralmente os graduados, e eles formam a patrulha que representará a tropa na dita atividade. Eis aí uma solução que só deve ser tomada em último caso. Mas o chefe Quim não procura evitar tal coisa; pelo contrário: isso é de seu agrado e ele pensa: Estou mandando a nata de minha tropa para a atividade e, desse modo, haverá mais probabilidades de eles se sairem bem diante das outras patrulhas."

— "Realmente. Uma patrulha formada só por graduados..."

— "Parece uma boa idéia. Mas só parece. Pense bem: Que tropa é essa da qual só podemos aproveitar meia dúzia de garotos? A meta deve ser, invariavelmente, enviar todas as patrulhas de uma tropa para as atividades da Região ou qualquer atividade que seja. Não devemos ficar felizes quando só é possível enviar alguns."

— "Você já havia falado em uma patrulha de graduados para fins de adestramento. Não seria o caso?"

— "Seria o último caso selecioná-los para uma atividade regional ou nacional. Essa patrulha de graduados é somente para fins de instrução. Todos sabemos que os chefes mantêm mais contato com seus monitores do que com o restante da tropa, e é através de seus monitores que a tropa é instruída. Isso justifica a existência de patrulhas de graduados para fins de instrução."

— "Entendo. O objetivo, no final das contas, é levar instrução à tropa inteira através dos graduados e, não, pensar apenas neles."

— "Exatamente! Você acaba de entender tudo! Nas reuniões de tropa, por exemplo, instruímos só os monitores e, depois sim, deixamos que cada um deles instrua a sua patrulha para que em seguida tenhamos um jogo cobrando a instrução dada. Não me recordo de que, justamente no momento do jogo, os não-graduados sejam deixados de lado!"

— "Mas se alguns escoteiros não têm condições financeiras de comparecer a essas atividades da Região, o que devemos fazer?"

— "Em primeiro lugar, as atividades devem ser anunciadas com o máximo de antecedência. Os pais também devem ser informados, no momento em que inscrevem seus filhos no grupo, de que essas atividades existem e que, invariavelmente, elas exigem algum dinheiro. Desse modo, nada será surpresa e, bem ou mal, todos terão tempo de poupar alguma quantia se realmente desejam participar deste ou daquele evento. Se há muitas atividades no calendário da Região, de modo que uma tropa não se sinta em condições financeiras de participar de todas, seus escoteiros devem entrar em acordo sobre a quais delas eles desejam comparecer. Assim é mais provavel que patrulhas inteiras representem a tropa nessas ocasiões. Seria diferente se cada escoteiro procurasse ir a uma atividade distinta, em que ele não veria presentes os demais membros da patrulha."

— "Mas suponhamos que uma patrulha realmente não possa participar inteira de uma atividade. O que se pode fazer nesses casos?"

— "Há mais de uma solução possível."

— "Qual seria a primeira?"

— "Suponhamos que um escoteiro tenha levantado dinheiro suficiente apenas para arcar com metade dos gastos da atividade. Nesse caso, o grupo poderia lhe conceder uma bolsa-atividade que cobrisse 50% do valor total. O chefe deve julgar se o escoteiro realmente não tem condições de custear 100% das despesas e o garoto beneficiado, via de regra, teria seu nome mantido em segredo. Um chefe que conheça bem seus escoteiros saberá fazer esse tipo de avaliação e caberia ao grupo reservar, digamos, de 3% a 5% do valor de sua renda para esse fim, ainda que sobreviva de mensalidades. A longo prazo haverá uma quantia razoável para essa finalidade. Pode haver também, é claro, uma bolsa no valor de 100% da atividade ou qualquer valor necessário à participação do jovem no evento."

— "É uma boa idéia. Mas algumas pessoas poderiam chamar isso de... perdoe a palavra; não me ocorre outra... 'esmola'."

— "Sinceramente, podem. Mas nós tampouco queremos distribuir esmolas em nosso grupo. Queremos, sim, que os escoteiros mereçam essa ajuda. Talvez eu tenha uma história que ilustre bem o que digo. Havia uma patrulha, certa vez, e um de seus membros morava longe de modo que ele gastava uma quantia considerável com o transporte à sede do grupo. Ele pertencia a uma família humilde e essa soma, numa certa época, pesou tanto no orçamento familiar que seus pais resolveram tirá-lo do grupo. O monitor, como tinha um padrão de vida mais abastado e temendo perder um bom escoteiro que ajudava sua patrulha a vencer nos jogos, passou a pagar as despesas de transporte de seu escoteiro. Para esse monitor, não era uma despesa, mas um investimento que dava lucro. Aquele bom escoteiro realmente faria falta em sua patrulha para vencer as outras nas competições da tropa. Isso, de modo algum, poderia ser chamado de esmola."

— "Um grupo poderia fazer a mesma coisa, tanto quanto fosse possível, e de modo que as patrulhas pudessem contar com um número mínimo ou conveniente de escoteiros quando houvesse uma atividade regional. Geralmente os organizadores desses eventos aceitam como patrulha qualquer conjunto de 5 escoteiros, ainda que uma patrulha deva ter de 6 a 8 membros."

— "Seria um investimento no moral da tropa e na imagem do G.E. Afinal, queremos fazer bonito diante de outros grupos. Teremos um nome a zelar, pense bem."

— "Vejo que há solução para tudo!"

— "Geralmente há, principalmente onde existem mangas arregaçadas e boa vontade. Mas falta dizer uma coisa importante. Os pais de um escoteiro beneficiado também devem ter em mente que não se trata de esmola. As pessoas mais orgulhosas (e em geral são justamente as mais pobres) se ofenderiam com a possibildade de se tratar de uma esmola e, assim, jamais aceitariam o benefício. Tampouco queremos que os pais se sintam mal com a oferta. Mas, nesses casos, há algo que sempre trago em mente: As pessoas que não precisam, pedem sorrindo; mas as que realmente precisam, às vezes se sentem tão envergonhadas que não pedem, de modo que nós é que devemos oferecer ajuda quando achamos por bem o fazer."

— "Mas quanto ao valor de 3% a 5% que você sugeriu. Qual o motivo dele?"

— "Num grupo patrocinado pode ser muito diferente, mas imagine um grupo que sobreviva exclusivamente de mensalidades."

— "Creio que a maioria dos que conhecemos seja assim. Por favor, continue."

— "Se for um grupo médio (de 100 sócios, digamos) e supondo que o valor da mensalidade seja de R$ 10,00, teremos uma renda de R$ 1.000,00 mensais. Cinco por cento equivale a R$ 50,00 por mês. Parece pouco, mas via de regra não participamos de atividades da Região todos os meses, e esse valor iria se acumulando unicamente para o fim da bolsa-atividade. Em dez meses esse valor chegaria a R$ 500,00."

— "Devemos ter em mente os inadimplentes, não é?"

— "O pior erro nesse caso é deixar que a dívida se acumule. Pois quem não pôde pagar um mês de mensalidade, poderá pagar de uma vez dez meses? É claro que podemos parcelar a dívida, mas o que acontece é que nós mesmos julgamos que não devemos cobrar uma dívida pequena, quando se trata de um mês ou dois de atraso, sob pena de sermos chamados de mesquinhos. 'Chamar os pais ao grupo por causa de R$ 10,00? Nem pensar!' alguns dizem tolamente. Todo mundo gosta da fama de benevolente, não é mesmo? Mas, para cobrar a dívida ou não, devemos pedir uma conversa com os pais. Se houver um motivo sério, saberemos logo e veremos a melhor maneira de ajudar. Mas, se for apenas uma desculpa esfarrapada, pelo menos teremos colocado o fanfarrão para sorrir amarelo. Alguns têm até o dinheiro da mensalidade em mãos, mas eles próprios dizem entre si que é tão pouco, que no próximo mês pagarão duas mensalidades de uma só vez, mas, passados alguns meses, eles acham que o valor acumulado é salgado demais. E estou falando de mensalidades baixas, de uns R$ 10,00 ou R$ 15,00! Para essas pessoas, a maior multa que poderia haver não seria cobrar 10% sobre o valor da mensalidade por cada mês de atraso, como é de praxe, mas seria (em vez disso) fazê-los vir ao grupo, e estou dizendo pessoalmente. Uma conversa por telefone estaria fora de questão. Essas pessoas geralmente dão pouco valor às coisas, para que não as chamemos de inconseqüentes, pois para elas seria muito simples tirar os filhos do grupo e colocá-los no judô, por exemplo, para não terem de pagar a dívida e (como acontece) ainda podem muito bem falar mal do G.E. Mas por outro lado elas odiariam ter que se deslocar até o grupo quando poderiam estar num churrasco, por exemplo, ou simplesmente à toa em casa. Seria uma multa e tanto para elas! São pessoas que, via de regra, têm dinheiro e o nariz empinado. E, sinceramente, não é uma multa de 10% sobre o valor da mensalidade que fará com que paguem alguma coisa em dia. São diferentes daquelas pessoas que, não podendo pagar, se sentem envergonhadas a ponto de tirar o filho do grupo. E, num caso extremo, se tivermos que suspender ou desligar um jovem, devemos pensar que os garotos podem ser extremamente comprometidos com o grupo, mas não os pais. Sendo assim, se esses garotos tão ligados ao G.E. não podem colocar algum juízo na cabeça de seus pais quando é necessário, nós, pelo bem desses membros juvenis, deveríamos tomar algumas precauções como venho dizendo."

— "Vejo que até a cobrança de mensalidades possui os seus segredos. Até isso!"

— "Infelizmente sim. Além do mais, esses que ficam meses, às vezes anos sem pagar, podem muito bem desestimular aqueles que pagam em dia. E, se cobrássemos então alguém que sempre esteve em dia, ele simplesmente poderia nos responder: — 'Se quem deve há um ano continua no grupo, quem deixou de pagar um mês é que vai ser suspenso?' E teríamos que baixar a cabeça então, se é que somos justos e podemos sentir alguma vergonha. Agora, mais precisamente sobre tipos de pagadores e de devedores, veja que curioso: há os que estão sempre em dia com o grupo e às vezes não têm dinheiro para ir a uma atividade, porque são pobres e pagam religiosamente as mensalidades. E há os inadimplentes profissionais, que às vezes vão a um evento da Região justamente com o dinheiro acumulado do calote. O que deveríamos temer é o que diz este texto de Rui Barbosa: 'De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça (...), o homem chega a rir-se da honra, desanimar-se da justiça, e ter vergonha de ser honesto.'"

— "Vejo que a pior coisa a fazer é realmente deixar que a dívida se acumule."

— "Mas, apesar disso, talvez ainda possamos fazer algo para incentivarmos os garotos a participarem das atividades regionais: eximir seus pais do pagamento de mensalidades no mês do evento, desde que tenham mais de um filho no grupo, e desde que mais de um filho vá à dada atividade, é claro."

Diálogo VIII

Sobre fundos de cena, o chefe Quim, o espírito escoteiro, e algumas sugestões de livros


1

— "Talvez o maior equívoco que um chefe pode cometer", dizia Bravo, procurando encontrar a melhor maneira de dizer, "seja não compreender muito bem como se sentem os seus escoteiros diante de um jogo ou acampamento. O entusiasmo, numa tropa, é essencial e, numa tropa de poucos recursos, às vezes é tudo. O chefe deve ser capaz de verificar que fundo de cena seria o mais conveniente para motivar seus escoteiros em relação a um jogo por exemplo."

— "Você já havia falado em fundos de cena antes. Queira explicar melhor."

— "Melhor do que explicar, darei alguns exemplos do que fazer e, principalmente, do que não fazer."

— "Os exemplos do que não fazer costumam ser os melhores..."

— "Quem já leu Escotismo Para Rapazes sabe quem é o Quim Novato que aparece nesse livro. Pois bem! Eu direi que há não só escoteiros como o Quim, mas também chefes. Entretanto, antes de continuar, deixe-me reproduzir algumas palavras sobre o escoteiro Quim quando vai acampar:

"O Quim, ao chegar ao campo, prevê grandes alegrias;
"E descobre, enfim, que as tendas são seguras por espias!"

"[BADEN-POWELL DE GILWELL, Lord. In: Escutismo Para Rapazes. Tradução: SANTOS, Dr. José Francisco dos. Portugal, Edições Flor de Lis, 1946. p. 113.]"

Bravo continua:

— "Para ilustrar esse par de versos, há uma caricatura: um escoteiro que tropeça num cabo [espia, segundo o dístico: note que são 15 sílabas poéticas em cada verso, com tônica na 5ª, 7ª, 11ª e, obviamente, na 15ª] e estatela-se com mochila, lampião e toda uma série de miudezas que trazia."

— "Então, nem todos os chefes são perfeitos? Oh, eu já sabia!"

— "Há chefes que são verdadeiros pata-tenras."

— "Mas você ainda me deve alguns exemplos do que fazer."

— "Num jogo como os Fugitivos, que aparece na obra já citada [p. 150], o chefe Quim diria: — 'Os escoteiros que são do grupo dos seguidores... e os escoteiros que são da equipe dos fugitivos... devem poceder desta ou daquela maneira.' Ora! Os escoteiros devem acreditar, ao menos durante o jogo, que não há escoteiros ali, mas, sim, perseguidores e fugitivos. Naquela adaptação de 'Alarme: Agarra que É Ladrão' [op. cit., p. 69], sobre a qual falamos em outro diálogo, lembre-se de que eu disse àquele escoteiro 'Você é o espião!' em vez de dizer 'Você é o escoteiro que fará o papel de espião neste jogo aqui' ou 'O espião será você, Fulano: vença seus amiguinhos de tropa e tome cuidado para não amarrotar o uniforme'."

— "Realmente não é a mesma coisa. Mas quanto à história por detrás do jogo: não é isso que chamam de fundo de cena?"

— "Naquela adaptação, em que este 'Agarra que É Ladrão' de B.-P. virou aquele meu 'Agarra que É Espião', a história por detrás do jogo foi o cerco de Mafeking. É preciso ter em mente o cerco e entender o que se passava entre os sitiados e os boeres. Caso os jogadores não conheçam a história, ela pode muito bem ser passada num fogo de conselho, por exemplo, ou quando o chefe reúne seus escoteiros ao fim do dia durante um acampamento. No dia seguinte, basta lembrar a história e dizer 'Você é o espião!' ou 'Defendam a bandeira no alto do morro!' (aí eles entendem por que o chefe havia fincado aquele pedaço de pano lá)."

— "E o que mais o chefe Quim faria?"

— "Ainda em relação a fundos de cena, deve-se esquecer palavras como 'jogo' e 'jogadores' durante um jogo. É como um filme ou uma história literária. Você não deve ter em mente o tempo todo que se trata de faz-de-conta. Pelo contrário: Quanto mais os escoteiros levarem a sério o fundo de cena, melhor. Uma pequena história e o vocabulário empregados são essenciais. Veja bem: Qual a primeira coisa que fazemos quando queremos aplicar um jogo do Kim?"

— "Juntar um monte de quinquilharias, algumas folhas e canetas e..."

— "Não, não! Eu quero dizer antes disso."

— "Antes do próprio jogo?"

— "Sim. Pense."

— "Bem... creio que devamos contar uma pequena história, mas nem sempre é o que acontece. Há até quem ache isso desnecessário."

— "É uma pena que alguém pense assim. A história por trás do jogo deve ser contada de modo que os escoteiros se interessem pelo que virá a seguir. Ou, melhor ainda, de modo que eles se entusiasmem. Decorar um monte de quinquilharias seria uma coisa realmente sem graça e, às vezes, realmente o é em algumas tropas, porque os escoteiros crêem piamente que seja exatamente isso o que estão fazendo. Infelizmente muitos garotos jogam o Kim sem conhecer a história de Kimball O'Hara. Por outro lado, se antes de começarmos o jogo tivermos o pequeno cuidado de contarmos a história de Kim, isto é, a história que explica as razões de o jogo ser daquele jeito, então os escoteiros, muito provavelmente, não verão à sua frente apenas quinquilharias. Cada escoteiro deve se sentir o próprio Kimball O'Hara e, por sua vez, o chefe que aplicar esse jogo deve acreditar que é o próprio Lurgan! Um chefe entusiasmado, eu lhe garanto, vale por dois. Da mesma forma, um escoteiro apático não rende como deveria. O próprio Movimento Escoteiro tem o seu fundo de cena. Leia (ou releia) Escotismo Para Rapazes e veja quantas vezes B.-P. evoca exemplos a fim de incentivar os jovens a serem escoteiros. Logo nas primeiras linhas do livro, ele diz: — 'O explorador do exército (o antigo escuta) é, geralmente, como sabeis, um soldado escolhido pela sua capacidade e coragem (...)' e, mais adiante um pouco, no parágrafo seguinte: — 'Mas, além de exploradores de guerra, há também explorados pacíficos — gente que em tempos de paz realiza trabalhos que exigem igual coragem e engenho.' E, depois de falar do cerco de Mafeking, desafiou os leitores: — 'Serias tu capaz de fazer outro tanto?' [op. cit., respectivamente pp. 3 e 11]. B.-P., em Escotismo Para Rapazes, usa inúmeros fundos de cena. Eu poderia fazer uma lista:

"Exploradores do exército;
"Kimball O'Hara;
"O cerco de Mafeking;
"A cavalaria medieval;
"O crime de Elsdon;
"A polícia rural Sul-Africana; etc."

Bravo continua:

— "Eu poderia citar outros exemplos do livro, mas, como creio que você vá ler esse livro caso ainda não tenha lido, deixarei que você perceba outros exemplos sozinho, incluindo os mais sutis. Mas, para terminar, permita-me lembrar que, para abrir a Palestra Nº 10 [op. cit., p. 130], ele desenhou um índio que espera pacientemente um pedaço de carne que assa sobre brasas. Isso também é fundo de cena. Nem só de palavras ele é feito. Podemos inspirar os garotos de inúmeras formas."


2

— "Agora vejo melhor o que são fundos de cena e que devo, além disso, ler Escotismo Para Rapazes. Se desse livro nasceu o Movimento, deve trazer tudo o que devemos saber."

— "Aí é que está. Não é um livro de regulamentos e regras como o P.O.R. que conhecemos. É mais um livro que sugere e dá exemplos. Se fosse um livro que descrevesse cruamente o que fazer, talvez o Escotismo não existisse. É justamente porque ele entusiasmou os primeiros garotos a formarem as primeiras patrulhas que o Escotismo surgiu. Vê como alguns bons exemplos e algumas palavras bem empregadas podem fazer a diferença? Eis aí o que deve fazer um bom fundo de cena."

— "Você poderia me indicar alguns livros? Hoje você falou bastante de Escotismo Para Rapazes."

— "Temos o P.O.R. para nos dizer exatamente o que fazer, com os seus princípios, organizações e regras; mas o espírito escoteiro não se dirige à Razão humana. É uma coisa que está no mundo dos sentimentos e não da Lógica. Hoje em dia, muito do que se refere à prática do Escotismo mudou. Por exemplo: Não se exige mais de um bom escoteiro que ele seja hábil em abater árvores. Um garoto atualmente pode chegar a Lis de Ouro sem nunca ter levantado um machado contra uma árvore."

— "'O Escoteiro é bom para os animais e as plantas', lembre-se do sexto artigo da Lei."

— "Não abatemos mais árvores hoje em dia, mas sacrificamos este ou aquele animal para a alimentação."

— "Não é a mesma coisa."

— "Hoje em dia realmente não é, mas já houve um tempo em que era. Veja bem. Dizemos que um escoteiro deve ser bom para os animais e ao mesmo tempo sacrificamos um animal qualquer, porque ele será útil para nossa alimentação. Quando a maior parte da população vivia no campo (no Brasil isso durou até algumas décadas atrás), derrubar uma árvore para pequenos serviços era uma coisa útil e corriqueira. Atualmente não derrubamos árvores com nossas próprias mãos, mas ainda o fazemos de forma indireta quando consumimos papel ou mobília."

— "Aonde você quer chegar?"

— "Quem inventou o sexto artigo da Lei Escoteira é a mesma pessoa que, em Escotismo Para Rapazes [op. cit., p. 98], explicava a melhor maneira de abater uma árvore."

— "Tem certeza disso?"

— "Tenho. Leia o livro e verá. Mas não há nenhum paradoxo nisso. O que acontece é que os tempos mudam e hoje já não vemos grande necessidade em abater árvores. Fazer isso apenas para cumprir uma etapa (quando na maioria das vezes já não há necessidade), isso, sim, seria ir contra o sexto artigo."

— "Quer dizer que se eu ler Escotismo Para Rapazes poderei aprender como abater árvores? E ainda assim devo ler o livro para ser um bom escoteiro?"

— "Você não deve ler o livro para ser hábil em matéria de pôr árvores abaixo, a não ser que você queira problemas com o IBAMA, mas você deve ler essa obra de B.-P. de modo que você possa (como direi?) captar o que vem a ser o espírito escoteiro. O que sentiram os jovens de cerca de um século atrás, nós ainda podemos sentir. Talvez ainda mais, porque vivemos a maioria em zonas urbanas. O Desconhecido é que aguça a imaginação. E aqui volto a dizer: Creio que o maior erro que um chefe pode cometer seja não estar em sintonia com sua tropa. Um chefe deve ser capaz de perceber, por exemplo, como sua tropa se sentiu diante de determinado jogo ou atividade. Enfim, deve notar quando riem mais alto, quando levantam a voz e por quanto tempo isso se prolonga em seus semblantes e em suas memórias. Será muito útil ao chefe saber perscrutar a mente de seus escoteiros e povoar-lhes a imaginação com as melhores imagens possíveis."

— "Concordo plenamente. Mas eu havia pedido que me indicasse mais alguns livros e, por enquanto, em minha lista há apenas dois."

— "Leia Scouting Games, da maneira que lhe for possível, em inglês ou português; mas não sei se há uma tradução. Se você não souber inglês, talvez a obra já esteja traduzida para outra língua de seu conhecimento ou, simplesmente, peça uma tradução a alguém, mesmo que tenha de pagar por ela. (Você não pagaria por um bom livro? Por que então não pagaria por uma boa tradução?).* Leia o Guia do Chefe Escoteiro, também escrito por B.-P. Queira ler ainda Opiniões de Delta, do chefe Rex Hazlewood, ou The Opinions of Delta, que é o título original em inglês, e também The Further Opinions of Delta, do mesmo autor. Esta última obra não sei como se chama em português, pois não me lembro de qualquer tradução para nossa língua, mas, em português, seria algo como As Novas Opiniões de Delta. Leia e consulte regularmente o P.O.R. e acompanhe qualquer mudança que lhe ocorra. Tenha sempre à mão o Guia de Especialidades e as Resoluções da Diretoria Nacional. (Não se esqueça de que estaremos subordinados a um órgão maior, que é a U.E.B.). Veja O Sistema de Patrulhas, do cap. Roland E. Phillipps, morto na I Guerra Mundial, e A Corte de Honra, de John Thurman. Certamente há outros livros interessantes que eu poderia citar, e mesmo outros tão ou mais interessantes que eu sequer conheço! Mas, para começar, esses aí hão de bastar. Talvez você não possa achá-los todos facilmente, pois a maioria deles são obras antigas e eu só posso lhe confirmar edições de décadas atrás. Mas certamente você pode imprimir da Internet as obras que já tiverem caído em domínio público, agindo sempre conforme a Lei, é claro. Opiniões de Delta, devo dizer, se trata de uma série de pequenos livros. E, antes que você diga que algumas dessas obras são muito antigas, direi que você poderá encontrar nelas o verdadeiro espírito escoteiro — como se ainda usássemos camisas de mangas compridas para compor o uniforme! E, se vamos acampar, Padrões de Acampamento não seria má leitura. Tenha sempre alguns bons livros de jogos com você também: Você vai usá-los até não poder mais!"

— "Não é uma lista grande, mas já vi que um grupo deve ter a sua própria biblioteca, por mais modesta que seja."

— "Meia dúzia de bons livros já vale por um mundo de bons conselhos. Será sempre um ótimo investimento para o grupo, principalmente se for possível conservar as obras de pequena tiragem que, com o tempo, às vezes se tornam verdadeiras raridades."
____________

(*) No caso das obras de B.-P., elas caem em domínio público a 8 de janeiro de 2011, segundo a Lei de Direitos Autorais válida para Inglaterra, Brasil, E.U.A., Canadá e outros países que adotam o prazo de 70 anos, contados a partir da morte do autor. (N.A.).

Diálogo VII

Sobre a melhor maneira de conquistar especialidades, a pior maneira, critérios para que a tropa selecione quais requisitos deseja cumprir, como e quando avaliar os escoteiros que cumprem uma etapa, e cerimônias surpresas de entrega de distintivos


1

— "Na tropa sênior, obtivemos algumas especialidades, e só Deus sabe como, porque agíamos por nossa conta e risco. Tínhamos de adquirir o conhecimento necessário sozinhos e imaginar alguma maneira de provar ao chefe que estávamos aptos. Tínhamos de pedir ao chefe para que ele avaliasse se havíamos cumprido este ou aquele requisito. Não havia um programa de instrução voltado para nenhuma espécie de etapa, porque, na verdade, não havia programa de adestramento algum! Não havia, portanto, 'o benefício da continuidade' em matéria de instrução, mas somente a disseminação aleatória de conhecimentos aqui e ali. Não havia, infelizmente, uma relação muito sólida ou estável entre instrução e atividades ou jogos. É um milagre que tivéssemos alcançado qualquer especialidade!"

— "Então", diz Rómeo, "teremos de fazer o que alguns de nossos antigos chefes não fizeram. E parece que será o contrário de tudo isso que você acaba de falar."

— "Será o extremo oposto, eu digo. Como conquistar a especialidade de Acampador numa tropa que raramente acampa? E, seja qual for o requisito que se queira cumprir, como fazê-lo se nunca temos a oportunidade?"

— "Isso é verdade. Se a especialidade pede que acampemos, pelo menos, durante certo número de noites, como conquistá-la se a tropa nunca acampa? E, quanto à instrução, como o chefe quer que saibamos algo se ele nunca nos ensina?"

— "Quando passamos para a tropa sênior, nós e os outros, ela já se encontrava fechada há um bom tempo. A tropa foi reaberta por nós e começamos do zero, pois não tivemos nenhum contato com seus velhos seniores antes que estes a deixassem. Entretanto, os chefes nos tratavam como, creio eu, foram tratados um dia, mas, veja bem, eles tinham feito parte de uma tropa que já existia, firmemente consolidada, ao contrário do que foi o nosso caso."

— "Nós é que nos organizávamos, muitas vezes, para cumprir uma etapa. Se o estágio probatório (ou estágio purgatório, como dizíamos nos piores momentos) exigia uma caminhada de, no mínimo, tantos quilômetros, nós a fazíamos sem o chefe e, mais tarde, apresentávamos a ele um relatório."

— "Como naquele acampamento em que o chupa-cabras nos levou um pacote de pão. Todas as suspeitas recaíram sobre o pobre animal."

— "O cachorro devia estar com fome e, para a sua felicidade, estávamos lá."

— "Lembro que resolvemos fotografar o campo e as pioneirias que fizemos. Tiramos foto até do jantar, para mostrar que o cardápio havia sido cumprido. Mas, antes de tudo, apresentávamos ao chefe um prospecto da atividade, incluindo cardápio, itinerário, programa das atividades que realizaríamos, orçamento, etc."

— "Há, certamente, outras maneiras de se alcançar uma especialidade ou etapa. Se quisermos que, numa tropa escoteira, todos cheguem a Lis de Ouro, devemos planejar isso. Deixar tudo por conta do acaso é esperar demais da sorte. Quanto às especialidades, devemos, em primeiro lugar, escolher aquelas que devem fazer parte do programa de instrução da tropa."

— "Algumas não podemos escolher."

— "Verdade. Porque as de Primeiros Socorros, Acampador e Cozinheiro são obrigatórias, ao menos no nível dois. Pois bem! Já temos escolhidas três especialidades de um total de doze."

— "Como escolher as outras nove?"

— "Devemos levar em conta três critérios para escolher uma especialidade. São eles, em ordem de importância: 1) Se realmente a queremos; 2) Se nos é possível conquistá-la; e 3) Se, mais do que dos meios necessários, dispomos dos meios favoráveis à sua conquista."

— "O primeiro critério é fácil entender. Basta que queiramos de verdade."

— "Não é tão simples assim. Cometem-se grandes erros em outros grupos a esse respeito. Uma vez um garoto desejava vivamente a especialidade de Sinaleiro, mas até então, desde o seu ingresso na tropa, ele nunca havia tido instrução sobre o assunto. Um dia, jogou as semáforas no chão e praguejou. O chefe, rindo da situação, perguntou: — 'Mas não era isso que você queria?' E o garoto respondeu: — 'Eu não sabia que era assim!'"

— "Entendo o que você quer dizer. Será que toda especialidade é realmente como imaginamos?"

— "Aí é que está. Não devemos imaginar. Devemos, sim, dar uma boa olhada no guia de especialidades. Geralmente há um só para toda a tropa ou grupo e a chefia o cede aqui e ali. Os escoteiros mais entusiasmados, quando têm acesso à loja da Região e o dinheiro necessário, adquirem um exemplar do guia. Quando têm apenas entusiasmo e pouco dinheiro, tiram xérox do livro (o que não deve ser incentivado, pois a Região deixa de ganhar a parte que lhe é devida e, no futuro, talvez pense que investir em livros escoteiros, ou mesmo custeá-los, seja mau negócio). Seria um ótimo investimento se a seção adquirisse alguns exemplares, de modo que houvesse ao menos um deles em poder de cada patrulha."

— "E depois?"

— "Quando todos os interessados já tiverem lido o guia, deve-se reunir a tropa e aparar as últimas arestas, isto é, o chefe deve acabar com as dúvidas a respeito do que possa significar este ou aquele requisito. É importante reunir a tropa, pois uma especialidade que, a princípio, não parece atrativa para uns, pode passar a ser depois de alguns esclarecimentos e exemplos dados pela chefia. Na verdade, mais do que escolher nominalmente quais especialidades queremos, deveríamos saber mais precisamente quais requisitos desejamos cumprir. Há um número mínimo deles que deve ser observado para que se alcance uma especialidade neste ou naquele nível."

— "Agora, quanto àquele segundo critério, que especialidade seria impossível de ser alcançada?"

— "Imagine que houvesse a especialidade de escultura no gelo. Seria praticamente impossível conquistá-la nos trópicos. E, ainda que houvesse ambientes artificialmente refrigerados para tal finalidade, em que cidade ele estaria localizado? Quantas viagens seriam necessárias? Quanto custaria? Enfim, seria viável?"

— "Entendo. Nesse caso, não basta entusiasmo."

— "Devemos ter em mente o tempo que vai levar até que os escoteiros alcancem essas especialidades. Há um limite para eles relacionado à idade. Não se pode esperar que eles cheguem a Lis de Ouro depois dos quinze."

— "E o que seria favóravel? Estou me referindo ao terceiro critério."

— "Imaginemos que existam grupos escoteiros na Antártida. Se eles quisessem conquistar aquela especialidade de escultura no gelo, haveria não só condições favoráveis, mas também ideais! Quanto a reunir a tropa para tratar do assunto, deve-se fazê-lo tantas vezes quantas forem necessárias. Haverá, portanto, esse fórum de discussões (ou Conselho de Tropa, como queira), cujo tema invariável serão as especialidades."

— "Há também a Insígnia Mundial do Conservacionismo, não é?"

— "Sim. Devemos incluí-la nesse fórum. Há igualmente três especialidades do Ramo de Conhecimento 'Serviços' que um escoteiro deve conquistar ao menos no nível dois. Lembremos que a meta é o distintivo de Lis de Ouro."

— "E a seguir?"

— "Deve haver um programa de instrução para que todos possam adquirir todo o conhecimento necessário. O programa de atividades deve ter base nesse primeiro programa. Os jogos e as atividades devem fazer com que os escoteiros pratiquem toda a instrução dada. E aqui devemos evitar um grande erro. O chefe não deve avaliar o escoteiro justamente na primeira vez em que este se veja fazendo alguma coisa. Um bom programa deve fazer com que os escoteiros pratiquem o máximo possível o que devem saber bem, seja pioneiria, seja cozinha. Quando os escoteiros estão realmente bons no que fazem, essa é a hora certa de o chefe avaliar. É assim que bons chefes aprovam muitos escoteiros de uma só vez. Não há nenhuma mágica. Pelo contrário: isso é o resultado de um longo processo ou esforço."

— "É por isso então que vemos tropas em que todos (ou quase todos) os escoteiros têm a mesma especialidade? Não se trata de bondade do chefe ou distribuição gratuita de distintivos?"

— "De modo algum! É a maneira mais inteligente de permitir que os escoteiros de uma tropa cumpram etapas, porque é justamente a maneira que gera mais resultados. É uma pena quando um escoteiro, isoladamente, tem de se esforçar para cumprir uma etapa. Não há instrução no programa de tropa nem oportunidade à vista de se poder cumprir esta ou aquela exigência. É a maneira mais difícil (ao menos para o escoteiro) e também a mais improdutiva para a tropa. Quando você fizer o CB Escoteiro ou Sênior você verá isso. Também terá oportunidade de conversar com chefes de outros grupos e verá, nessa ocasião, que nem todos os grupos agem do mesmo modo. Você aprenderá muito em ocasiões como essas e talvez queira manter contato com chefes de longe, de maneira a não se sentir isolado em seu G.E., nem desanimado, imaginando que a galinha do grupo vizinho seja mais gorda que a do seu. Em todo caso, talvez você queira manter uma página na Internet. Muitos grupos já fazem isso em várias partes do mundo e, para que não tomemos os bons exemplos alheios sem oferecer nada em troca, também podemos criar uma página, pagando de volta o que os outros nos oferecem de graça."

— "Estou vendo que sim. No entanto, para que não fujamos ao tema 'especialidades', há grupos em que as coisas são daquela maneira que você vinha me contando?"

— "Veja bem. Geralmente a primeira vez em que um garoto faz comida na vida é quando tem de cumprir uma etapa que exija o preparo de uma refeição. É justamente aí que ele costuma ser avaliado."

— "Ele poderia praticar em casa."

— "E quanto à cozinha mateira? E quanto a tudo aquilo que exige ar livre, atividades de tropa e outras tantas coisas que só um bom programa de instrução muito bem casado com um belo programa de atividades pode oferecer?"

— "Você tem razão. Parece que não se pode ser escoteiro se estamos o tempo todo em casa ou na sede."

— "Se vamos ter socorristas na tropa, devemos incluir nos programas de instrução e de atividades os requisitos de primeiros socorros que a tropa escolheu conquistar e planejar todo tipo de jogos e atividades de modo que eles pratiquem o máximo possível e, quando estiverem craques no assunto, aí sim cobraremos a etapa. Afinal, estamos falando de especialistas e, não, de curiosos no assunto. Uma boa idéia, a meu ver, é não avisar quando será feita a avaliação. Na verdade, estaremos avaliando o tempo todo e, quando verificarmos que, pelo menos, a maioria ou boa parte deles já está apta a receber certa especialidade, faremos uma cerimônia surpresa. Eles só saberão do que se trata no último segundo. Os demais, quando estiverem aptos, receberão os distintivos em outra cerimônia surpresa."

— "Para mim, parece ótimo. Vejo que teremos uma excelente tropa."

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Diálogo VI

Sobre por que motivos fecham os grupos escoteiros


1

— "Por que fecham os grupos escoteiros?" perguntou Bravo lentamente, dando início à questão.

— "Você quer saber por quê?"

— "Sim. Pense bem. Por que um grupo escoteiro fecha?"

— "Bem... Para que nos preocuparmos com isso? No momento não pretendo fechar nenhum grupo."

— "Mais um motivo para que pensemos sobre o assunto. Não queremos lançar as sementes de uma coisa que morrerá em breve. Queremos um grupo auto-renovável e, se me permite a utopia, eterno. Sendo assim, por que fecham os grupos?"

— "Chega o dia em que as pessoas perdem o interesse, os escoteiros vão se afastando e o próprio chefe, enfim, deixa o grupo para cuidar da própria vida."

— "Pois eu digo que há sempre mais membros juvenis interessados em continuar do que adultos. Geralmente o que falta é um chefe. Alguns garotos abandonam a tropa logo nas primeiras semanas. Estes não sabiam o que era Escotismo e, uma vez dentro da tropa, descobrem que não gostam do Movimento. Nem todos os garotos nascem para a vida ao ar livre e alguns odeiam qualquer esforço físico. Mas, para que possamos dizer que um garoto não gosta do Movimento Escoteiro, primeiro temos de oferecer-lhe uma mostra do verdadeiro Escotismo."

— "Afinal, o que você está tentando dizer?"

— "Que os garotos, uma vez que mantenham contato com o verdadeiro Escotismo, raramente dizem que não gostam dele e abandonam o grupo. Entretanto, uma boa tropa pode fechar ainda que haja inúmeros garotos contrários à idéia de fechamento. E, se a tropa fecha, é porque chega o momento em que lhe falta um chefe. É um erro pensar que somente as tropas que andam muito mal das pernas correm o risco de se extinguirem."

— "Já podemos concluir então que não basta a uma tropa ser boa para ver assegurada sua existência. Desse modo, por que uma tropa que esteja em sua melhor fase correria o risco de fechar?"

— "Como eu disse, há sempre mais jovens do que adultos para manter uma seção. As estatísticas estão aí para provar. E, se lembrarmos bem, concordaremos que o Movimento é para os jovens."

— "O Escotismo, de fato, é um movimento juvenil."

— "Mas ainda assim não é aí que reside a questão. Proporcionalmente, há chefes suficientes em relação ao número de jovens no Brasil. Basta termos acesso a algum censo sobre o assunto. Se dividirmos o número de chefes pelos quatro ramos, veremos que o X da questão tampouco reside aí. Então, onde deveríamos procurar o erro?"

— "Vamos ver. Temos uma boa tropa, um bom chefe (eu presumo) e uma boa quantidade de escoteiros... Mas ainda assim essa tropa pode fechar? Explique melhor."

— "Eu não estou falando de um cometa caindo sobre a sede do grupo ou coisa parecida. Estou falando de coisas que acontecem. Há grupos por aí fechando as portas e muitas pessoas não compreendem o porquê. Como, depois de tanto tempo, um grupo poderia fechar?"

— "Os tempos mudam; as pessoas passam a se interessar por outras diversões. Hoje em dia há tantos atrativos que não existiam até há algumas décadas!"

— "Onde há mais atrativos oferecidos pela vida moderna? Numa cidade pequena ou numa metrópole como São Paulo?"

— "Certamente em São Paulo há bem mais atrativos do que aqui onde vivemos. Isso não se discute."

— "E ainda assim há inúmeros grupos em todas as grandes cidades brasileiras e, às vezes, nenhum nas pequenas cidades tão carentes de atrativos. Pois eu digo que há muitas pessoas que fazem faculdade, vão à praia e freqüentam a vida noturna de suas grandes cidades e, ainda assim, se dedicam ao Movimento. Não devemos imaginar que as pessoas só se interessam pelo Escotismo por extrema falta de opções de lazer. Além do mais, não classifico o Movimento Escoteiro como uma forma arcaica de diversão, facilmente substituível por qualquer forma moderna de entretenimento."

— "O.K., voltemos à questão. Por que fecham os grupos escoteiros?"

— "Um grupo fechar porque andava mal das pernas, isso é realmente óbvio. Mas agora diga-me: por que um grupo, tendo vários aspectos favoráveis, poderia fechar? Geralmente os jovens são os últimos a abandonar o grupo. Somente quando as reuniões deixam a desejar e depois de um longo tempo de insistência por parte deles, é que perdem as esperanças e procuram coisa melhor com que se ocupar. Não raro, passam a se ocupar com nada! Nesse caso, é o chefe que fica sozinho e diz algo do tipo: — 'Os jovens de hoje não se interessam mais pelo Escotismo!' ou: — 'A concorrência dos lazeres modernos é muito grande. É uma luta injusta!'"

— "Mas antes você estava falando de uma boa tropa, em que havia aspectos favoráveis."

— "Nesse caso, é o chefe que geralmente abandona a tropa. Há boas reuniões, os garotos participam regularmente, etc., mas, devido a algum problema particular, o chefe é obrigado a se afastar."

— "Não haveria um substituto?"

— "Agora chegamos ao X da questão. Imagine que o último chefe da última seção de um grupo tenha de se ausentar por tempo indeterminado. Não importa o motivo; o importante é dizer que ele tem de se ausentar. Ele era um bom chefe e havia boas reuniões. Nesse caso, as pessoas dirão: — 'Não há mais uma alma bondosa neste mundo que faça um serviço voluntário!' ou, então: — 'Chefe como este não se encontra mais. O que se pode fazer?'"

— "Sendo assim, por que os adultos não querem mais se dedicar ao Movimento?"

— "Pois eu digo que eles querem. Não se engane: Nós somos prova de que há adultos desejosos de participar. Sempre houve e sempre haverá interessados. O Homem, em seu íntimo, é o mesmo em todos os tempos e lugares. Os sentimentos que movem o mundo nunca mudam. Eis aí o segredo de tudo. Sendo assim, o que estamos fazendo de errado?"

— "Eu realmente não sei. O fato é que alguns grupos fecham por falta de chefes. Ao menos sobre isso concordamos."

— "Então, se um grupo fecha, é porque um adulto deixou o grupo e não houve uma alma caridosa que o quisesse substituir? Essa é uma resposta infinitamente ingênua. 'Felix qui potuit rerum cognoscere causas'."

— "Meu Deus! Você se esqueceu de ligar a tecla SAP. Queira traduzir por favor."

— "'Feliz de quem pode penetrar a causa secreta das coisas'. E permita que eu diga mais: Quando um grupo fecha, isso é o resultado de um longo processo. Nenhum grupo fecha da noite para o dia como pode parecer. Se fizermos como Tucídides e dividirmos as causas dos acontecimentos em subjacentes e imediatas, entenderemos perfeitamente por que fecham os grupos."

— "Então, por favor, faça-me entender. Como fazia Tucídides?"

— "Mais ou menos assim. Se o último chefe da última seção de um grupo enfarta, é abduzido por alienígenas ou simplesmente deixa a tropa por qualquer motivo, e não há substituto, essa será a causa imediata, aquela que satisfaz as pessoas de 'mentalidade ingênua', mas que não satisfaz plenamente as pessoas de 'mentalidade crítica' (se é que posso empregar termos de Sociologia). Pois bem! Agora falta saber quais seriam as causas subjacentes, isto é, o que explica a força poderosa da causa imediata, que, de outro modo, não teria o mesmo efeito sobre os acontecimentos. Para isso, é preciso voltar no tempo sempre. Já falamos a respeito de grupos 'de bairro' e daqueles que não o são. Foi em nosso primeiro diálogo. Imagine então um grupo que não seja exatamente 'de bairro' (como o 21 que já conhecemos) e que, ao longo de toda a sua história, 99% de seus chefes tenham sido ex-membros juvenis. Imagine agora esse grupo em seu auge, havendo nele todos os quatro ramos representados. Agora, sim, imaginemos o começo do fim. Num belo dia o clã pioneiro, que já era pequeno, fecha. Ninguém tem muita pressa em reabrir essa seção e muitos dos seniores que atingiram os 18 anos e que iriam para o clã, ou deixam imediatamente o grupo ou passam para a chefia. Alguns adultos chegam a lamentar, mas na prática nada é feito. Mais tarde, é a vez de a tropa sênior fechar. Nesse caso, os escoteiros raramente continuam no grupo ao completarem 15 anos. Aqueles que realmente desejam continuar no Movimento procuram outro grupo e, mais raramente ainda, voltam para seu grupo de origem após deixarem o clã no novo grupo. No fim das contas, quem terá lucrado quando alguns desses jovens resolverem se tornar chefes, será justamente esse outro grupo. Pois bem! Entre a tropa escoteira e a chefia passou a existir um buraco na caminhada daqueles escoteiros que, um dia, se tornariam chefes. Mas nem sempre é preciso que algumas seções encerrem as atividades. Algumas seções vão minguando e passam a funcionar tão infimamente, que logo se tornam incapazes de oferecer escotistas ao grupo. Se uma seção possui vários jovens, é preciso lembrar que só alguns, talvez apenas um se torne um bom chefe no futuro. E, se havia um clã e ele fecha, significa que a tropa sênior deve ser observada mais atentamente. O que estaria errado? Todo esse processo não acontece da noite para o dia. Pode ser um processo de muitos e muitos anos. E, quem sabe entender um processo desse tipo, sabe prever-lhe o resultado."

— "Pensando bem, geralmente a primeira seção a desaparecer num grupo é o clã."

— "É um péssimo sinal. E geralmente o começo do fim num grupo que não seja 'de bairro'. Quanto a admirar o fato de que os seniores se tornem assistentes ou chefes sem passarem pelo clã, não é, em absoluto, admirável. Quanto mais um jovem mantiver contato com o grupo como membro juvenil, maiores as probabilidades de ele se tornar chefe e continuar como tal. Há que haver o maior número possível de laços entre o jovem e o grupo. Trata-se de pura Psicologia! Isso não é só admirável, mas também desejável."

— "E por que não poderia haver esses laços enquanto ele estivesse na chefia?"

— "Ele desejará ser chefe quando não puder mais participar de uma seção como membro juvenil. E, quanto mais cedo ele começar como chefe, menos laços teremos que o incentivem a entrar para a chefia. Deixe que eles comecem como assistentes quando estiverem no clã e, só depois disso, deixe que eles sejam chefes, salvo algum caso de extrema necessidade, se tivermos que escolher dos males o menor. É claro que muitos escoteiros têm o desejo de se tornarem chefes, desde tenra idade, mas é um sentimento ainda pueril. Se você prestar atenção, notará que, na mente deles, ser chefe é dar ordens e ser prontamente atendido. Ou, na linguagem de alguns garotos, 'mandar e dar bronca'. Sabemos muito bem que esse não é o retrato fiel de um autêntico chefe escoteiro. A maior parte de nosso trabalho (cerca de 60%) não é vista pelos outros, sejam estes os garotos, sejam os pais, porque consiste em administrar a seção, e esse é um trabalho para a mente, geralmente feito quando estamos sentados a uma mesa de escritório. Infelizmente, somos notados apenas quando estamos em movimento, fora das portas da sede, o que leva até mesmo alguns escotistas a pensar puerilmente que chefe só serve mesmo para 'mandar e dar bronca', e o pior de tudo: acabam agindo assim, deixando de planejar até mesmo as reuniões de tropa, ou resumindo o programa de atividades de um acampamento a uma bola de futebol! É uma pena que o trabalho intelectual não seja tão apreciado, mas saibamos que o planejamento vem antes da ação. E, como o Escotismo não deixa de ser sinônimo de 'ação ao ar livre'..."

— "Concordo em gênero, número e grau. Mas, num grupo 'de bairro', por que os pais se eximem da chefia?"

— "É preciso lembrar que parte dos adultos exerce outras funções. Um grupo não é feito apenas de chefes. Mas em todo caso há que haver laços que unam os pais ao grupo. Por exemplo: ter um filho no grupo é um vínculo ou laço; ter amigos no mesmo grupo, outro vínculo. Mas, quando digo amigos, quero dizer isto: Pessoas que não mantêm contato somente devido às suas funções no G.E., mas que também se vêem fora dele para atividades não-escoteiras. Todos esses laços, é claro, também podem ser observados num grupo que não seja 'de bairro'."

— "Pois bem! 'Feliz de quem pode penetrar a causa secreta das coisas'! Mas eu ainda tenho uma dúvida. Por que geralmente a tropa escoteira é a última a fechar?"

— "Geralmente essa seção é a menina dos olhos de um grupo. Trata-se também, e eis o ponto mais importante, do ramo do Movimento Escoteiro que conta com o maior número de membros juvenis. Portanto, é a seção que pode absorver o maior número de erros da chefia antes de sucumbir, principalmente se o afluxo de novos membros (vindos da Alcatéia ou não) for realmente grande. Há tropas escoteiras em que apenas uns 20%, 30% de seus membros de 11 anos chegam à tropa sênior, porque os outros 70%, 80% não chegam a passar mais de um ano ou dois na tropa escoteira. Mas esta seção está sempre vazia? Não, nunca, simplesmente porque a entrada de novos membros se dá em quantidade excepcional."

— "Realmente é incrível. Havendo bons chefes, seria possível ao grupo ter pelo menos duas tropas escoteiras, talvez três!"

— "Quando um grupo encolhe até se resumir à tropa escoteira, é preciso refletir grandemente. Mas creio que eu ainda tenha um bom conselho a oferecer. Quando alguém previne um mal, geralmente não vê seu esforço reconhecido. Alguns duvidam de que ele realmente tenha feito algo pelo grupo, e outros (que percebem o fato) até mesmo se calam, talvez por serem minoria. Esse é o herói desconhecido e, algumas vezes, chega a ser criticado ingenuamente. Mas aquele que só resolve um problema depois que ele acontece, quando todos já sentiram na carne seus efeitos, esse, então, é o herói aplaudido por todos e ninguém o critica. Mas às vezes esse herói louvado por todos poderia muito bem ser chamado de negligente. Infelizmente, para as pessoas é mais fácil sentir um problema na carne (quando ele já é óbvio) do que, com antecedência, abraçá-lo com a mente e evitá-lo. 'Voa com o pensamento a toda parte', portanto, a fim de evitar problemas futuros, mas que nascem desde o dia de hoje. Eis aí a melhor divisa para quem quer evitar problemas. Mas, àquele a quem falta a pena da Razão, 'não há mal que lhe não venha'."